
Fahrenheit 451
Trad. Cid Knipel
Nessa história cheia de
simbolismos e alegorias, um bombeiro – numa época em que eles só são
úteis para pôr fogo em livros – vê a fé em sua profissão paulatinamente
ruir. A amizade com uma jovem vizinha, participante de uma comunidade
clandestina de leitores, acrescenta dúvidas a sua insegurança acerca da
ordem incendiária vigente.
Num mundo em que a ordem totalitária impera, só resta a clandestinidade e a marginalidade àqueles que não se encaixam nos padrões impostos literalmente a ferro e a fogo. Forçados a viver num mundo sem livros, os leitores mais radicais passam a se refugiar em áreas excluídas da urbe e a decorar obras inteiras, de modo a que o patrimônio intelectual seja preservado ao máximo enquanto cada um viver.
Diz um personagem, após uma hecatombe nuclear que, durando um segundo, faz toda a cidade opressora desaparecer do mapa:
“Agora, vamos subir o rio (...). E nos concentrar num só pensamento: não somos importantes, não somos nada. Algum dia, a carga que estamos carregando [os livros que decoraram inteiros, como fossem bibliotecas vivas e ambulantes] conosco poderá ajudar alguém. Mas, mesmo quando tínhamos os livros às mãos, muito tempo atrás, não usávamos o que tirávamos deles. Continuávamos a insultar os mortos. Continuávamos a cuspir nos túmulos de todos os infelizes que morreram antes de nós. Durante a próxima semana iremos encontrar muitas pessoas solitárias, tal como no próximo mês e no próximo ano. E quando perguntarem o que estamos fazendo, poderemos dizer: estamos nos lembrando”.
Lembrar-se no caso, não da catástrofe nuclear, mas de cada palavra, cada vírgula do texto que, proibido em versão impressa, foi decorado, como o fazem os atores de teatro.
Em certo sentido, o autor de Crônicas Marcianas e Algo Sinistro Vem por Aí nem sabia que estava inventando, em 1953, antes mesmo da internet, uma versão muito mais sofisticada do que o e-book.
Comparar o romance com o filme de François Truffaut é inevitável, até porque, embora ambos sejam primorosos, há enormes diferenças entre um e outro.
Agora, um poema de Mário Quintana a Ray Bradbury:
FONTE: Bardbury, Ray. Fahrenheit 451. Trad. Cid Knipel. São Paulo, Ed. Globo, 2003.
Este
excelente romance de Ray Bradbury já nasceu clássico. Adaptado para o
cinema por François Truffaut, trata de um futuro não muito distante,
quando os livros, proibidos, serão incendiados junto com seus leitores.
É
uma contundente alegoria contra regimes autoritários, para os quais
nada pode haver de mais perigoso do que certos tipos de livros. O que
está em questão, aqui, é menos a ficção científica e mais a denúncia
contra a censura e contra todos os totalitarismos.
O
livro, na edição em questão, conta ao início com uma breve biografia do
autor e com um esclarecedor prefácio, de Manuel da Costa Pinto. Ao
final, escritos pelo próprio autor, dois contundentes textos alertam o
leitor para práticas nocivas de censura que, apoiadas em senso comum ou
em preconceitos, resultam no mau hábito de se amputar textos literários
destinados à escola.
Num mundo em que a ordem totalitária impera, só resta a clandestinidade e a marginalidade àqueles que não se encaixam nos padrões impostos literalmente a ferro e a fogo. Forçados a viver num mundo sem livros, os leitores mais radicais passam a se refugiar em áreas excluídas da urbe e a decorar obras inteiras, de modo a que o patrimônio intelectual seja preservado ao máximo enquanto cada um viver.
Diz um personagem, após uma hecatombe nuclear que, durando um segundo, faz toda a cidade opressora desaparecer do mapa:
“Agora, vamos subir o rio (...). E nos concentrar num só pensamento: não somos importantes, não somos nada. Algum dia, a carga que estamos carregando [os livros que decoraram inteiros, como fossem bibliotecas vivas e ambulantes] conosco poderá ajudar alguém. Mas, mesmo quando tínhamos os livros às mãos, muito tempo atrás, não usávamos o que tirávamos deles. Continuávamos a insultar os mortos. Continuávamos a cuspir nos túmulos de todos os infelizes que morreram antes de nós. Durante a próxima semana iremos encontrar muitas pessoas solitárias, tal como no próximo mês e no próximo ano. E quando perguntarem o que estamos fazendo, poderemos dizer: estamos nos lembrando”.
Lembrar-se no caso, não da catástrofe nuclear, mas de cada palavra, cada vírgula do texto que, proibido em versão impressa, foi decorado, como o fazem os atores de teatro.
Em certo sentido, o autor de Crônicas Marcianas e Algo Sinistro Vem por Aí nem sabia que estava inventando, em 1953, antes mesmo da internet, uma versão muito mais sofisticada do que o e-book.
Comparar o romance com o filme de François Truffaut é inevitável, até porque, embora ambos sejam primorosos, há enormes diferenças entre um e outro.
Agora, um poema de Mário Quintana a Ray Bradbury:
Ray Bradbury - Mário Quintana
Eu queria escrever uns versos para Ray Bradbury,
o primeiro que, depois da infância, conseguiu encantar-me com suas histórias mágicas
como no tempo em que acreditávamos no Menino Jesus
que vinha deixar presentes de Natal em nossos sapatos empoeirados de meninos
e nada tinha a ver com a impenetrável Santíssima Trindade.
Era no tempo das verdadeiras princesas,
nossas belíssimas primeiras namoradas
- não essas que saem periodicamente nos jornais.
Era no tempo dos reis verdadeiramente heráldicos como os das cartas de jogar
e do bravo São Jorge, com seu cavalo branco, sua lança e seu dragão.
Era no tempo em que o cavaleiro Dom Quixote
realmente lutava com gigantes,
os quais se disfarçavam em moinhos de vento.
Todo esse encantamento de uma idade perdida
Ray Bradbury o transportou para a Idade Estelar
e os nossos antigos balõezinhos de cor
agora são mundos girando no ar.
Depois de tantos anos de cínico materialismo
Ray Bradbury é a nossa segunda vovozinha velha
que nos vai desfiando suas historias à beira do abismo
- e nos enche de susto, esperança e amor.
Mário Quintana
Eu queria escrever uns versos para Ray Bradbury,
o primeiro que, depois da infância, conseguiu encantar-me com suas histórias mágicas
como no tempo em que acreditávamos no Menino Jesus
que vinha deixar presentes de Natal em nossos sapatos empoeirados de meninos
e nada tinha a ver com a impenetrável Santíssima Trindade.
Era no tempo das verdadeiras princesas,
nossas belíssimas primeiras namoradas
- não essas que saem periodicamente nos jornais.
Era no tempo dos reis verdadeiramente heráldicos como os das cartas de jogar
e do bravo São Jorge, com seu cavalo branco, sua lança e seu dragão.
Era no tempo em que o cavaleiro Dom Quixote
realmente lutava com gigantes,
os quais se disfarçavam em moinhos de vento.
Todo esse encantamento de uma idade perdida
Ray Bradbury o transportou para a Idade Estelar
e os nossos antigos balõezinhos de cor
agora são mundos girando no ar.
Depois de tantos anos de cínico materialismo
Ray Bradbury é a nossa segunda vovozinha velha
que nos vai desfiando suas historias à beira do abismo
- e nos enche de susto, esperança e amor.
Mário Quintana
o primeiro que, depois da infância, conseguiu encantar-me com suas histórias mágicas
como no tempo em que acreditávamos no Menino Jesus
que vinha deixar presentes de Natal em nossos sapatos empoeirados de meninos
e nada tinha a ver com a impenetrável Santíssima Trindade.
Era no tempo das verdadeiras princesas,
nossas belíssimas primeiras namoradas
- não essas que saem periodicamente nos jornais.
Era no tempo dos reis verdadeiramente heráldicos como os das cartas de jogar
e do bravo São Jorge, com seu cavalo branco, sua lança e seu dragão.
Era no tempo em que o cavaleiro Dom Quixote
realmente lutava com gigantes,
os quais se disfarçavam em moinhos de vento.
Todo esse encantamento de uma idade perdida
Ray Bradbury o transportou para a Idade Estelar
e os nossos antigos balõezinhos de cor
agora são mundos girando no ar.
Depois de tantos anos de cínico materialismo
Ray Bradbury é a nossa segunda vovozinha velha
que nos vai desfiando suas historias à beira do abismo
- e nos enche de susto, esperança e amor.
Mário Quintana