segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Ferreira Gullar: um poeta que comeu mosca



Na eleição presidencial de 2010 o poeta Ferreira Gullar manifestou-se abertamente em favor da candidatura José Serra, coerente com a trajetória que vem desenvolvendo nos últimos 15 anos, ao menos.

Sendo ele eleitor apto, sua escolha política é legítima, e deve ser respeitada. Se Médici estivesse vivo e fosse candidato devidamente registrado, seria do jogo democrático que eventualmente o escolhesse também.

Sucede, como o poeta gosta de dizer, que a questão não é apenas o direito legítimo de um eleitor votar em quem quiser, mas a de um eleitor como Gullar votar desinformado, e isso no caso de um intelectual de sua estatura é indesculpável.

Sucede, retomando o cacoete do poeta, que o candidato Serra não informou ao eleitor-poeta que, enquanto aceitava candidamente seu voto, orientava Paulo Renato, o Secretário da Educação de São Paulo, a organizar uma verdadeira ordem inquisitorial para vetar obras literárias.

Chefiada pelo ex-ministro de FHC, essa ordem medieval discípula de Torquemada verificava nos livros, linha a linha, a presença de vocábulos que conspurcassem os olhos de alunos ou de professores.

O saldo dessa caça às bruxas é que obras já clássicas, tais como Corpo, O Amor Natural e Farewell de Drummond, foram vetadas. Toda a obra de Plínio Marcos idem. O mais representativo de Rubem Fonseca, ibidem, entre muitos, muitos outros.

O poeta maranhense radicado no Rio poderia afirmar: até aí, não mexeu comigo.

E aí reside a falta de informação crucial: mexeu sim.

Sua Poesia Completa, Teatro e Prosa, em belíssima edição da Nova Aguilar foi vetada integralmente. E foram vetados também todos os livros seus que contêm vocábulos “pornográficos”. Seu Poema Sujo, considerado por Vinícius de Moraes um dos principais da literatura brasileira do século XX, está interditado até para envio a professores.

Nos últimos anos Gullar vem acumulando equívocos. Em entrevista a uma TV, anos atrás, assisti estupefato ao poeta, de corpo presente, defender a tese de que a resistência armada à ditadura era uma completa porra-louquice e que ela, a resistência, era culpada pelo endurecimento do regime militar, tese que corrobora com os argumentos dos torturadores de que os torturados são culpados pela própria tortura de que foram vítimas.

No caso do alinhamento com José Serra, também apoiado por TFP e neonazistas, estou dando ao poeta o benefício da dúvida, em razão de uma hipotética desinformação. Porém, justiça seja feita, já faz tempo esse grande poeta tem andando em más companhias.

E uma vez que fez campanha para Serra, não custa nada solicitar a ele que interceda junto ao novo governador, também tucano, a gentileza de desenterditar sua obra, cuja presença na estante de estudantes de Ensino Médio e de Professores só pode fazer bem.

Afinal, de alguma coisa deve servir declaração de voto tão mal informada e, de meu ponto de vista, infausta.





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sábado, 13 de novembro de 2010

Percurso de João Antônio até mim

É dezembro, estou agora olhando para a capa da 7a. edição da Record do livro de contos de João Antônio Malagueta, Perus e Bacanaço. Esse exemplar eu recebi de uma escola que fechou as portas quando eu lá trabalhei. Ela pagou o que pôde aos funcionários e professores da forma que pôde.

A mim couberam livros que os donos arruinados do estabelecimento comercial da área da educação consideravam de algum valor, entre os quais este, do qual comento aqui a capa. Não estavam de todo enganados, pois boa parte do que me deram como paga aos meus serviços de professor era de boa qualidade. Pena que a imobiliária não os aceitasse para quitação do aluguel.

Um exemplar dessa mesma edição eu já tivera em mãos quando adolescente. Meu irmão, que já se encontra no andar de cima, trabalhava na Folha de S. Paulo e de vez em quando aparecia com um lançamento que enviavam ao jornal para divulgação.

Na época eu me importava mais com o jogo de futebol do que com a literatura. Em princípio, não dei a menor para esse livro maior, mas como depois da pelada na rua a gente ia ver os marmanjos, entre os quais um outro irmão meu, este versado nas artes na malandragem, afiar o taco no bilhar, a capa me convidou e eu passei as férias relendo e relendo  esse clássico do submundo.  Era era também dezembro, mas era 1979, quase em outra vida.

Mudei tanto de endereço na juventude que fui me desfazendo de muita coisa a cada destino novo, sempre menor. Miseravelmente esse livro ficou pelo caminho. Porém, quis o destino que ele me retornasse às mãos, anos depois, por vias transversas. Melhor dizendo, adversas.

O fundo da imagem da capa dessa edição é o buraco do Adhemar à noite, com as lanternas traseiras dos automóveis esticando aquelas linhas vermelhas de antigos cartões postais, em meio à paisagem escura enfeitada pelas placas luminosas, pelos imensos out-doors de néon e pelas poucas janelas dos edifícios com suas luzes acesas a denunciar o adiantado da hora.

Só quem conheceu a cidade de São Paulo quando ainda havia buraco do Adhemar, placas luminosas psicodélicas e out-doors gigantes de néon saberá o quanto essa linda imagem, fotografada sem dúvida do viaduto Santa Ifigênia, tem de nostálgico e melancólico.

Na parte baixa da capa, aplicada sobre essa fotografia evanescente, ocupando toda sua largura, há uma ilustração em desenho colorido. Nela, uma mesa de bilhar com apenas três bolas, uma azul, uma branca e uma amarela.

À mesa, no taco, um jogador de face branca, bigode, mãos curadas, camisa de punho branca e colete preto. Atrás dele, apoiando-se na mesa, um observador, de paletó azul claro, chapéu de malandro. Atrás deste, um último personagem de paletó branco, cabelos e bigode pretos. Com certeza, na ordem, ilustrações de Malagueta, Perus e Bacanço. Os três concentrados pela tensão da tacada, enquanto a cidade escura ao fundo escorre em listras sanguíneas pela obra de engenharia urbana de apelido pouco respeitoso.

O taco de bilhar está prestes a cutucar a bola branca na direção da azul. Tudo indica que ela será encaçapada no buraco de quina do fundo, na parte direita da mesa que ficou de fora da capa. Não deixa de ser intrigante que na mesa de pano verde falte o buraco, a caçapa, enquanto que na foto escura que serve de fundo à capa o ilustrador tenha escolhido fazer constar justamente a então caçapa mais famosa da cidade.

Aplicados em primeiro plano, no alto, o nome  do autor, em maiúsculas, em branco e bordas vermelhas: JOÃO ANTÔNIO. Logo abaixo, uma breve chamada em letras menores: Autor de Leão de Chácara. Imediatamente abaixo, o título do livro, em vermelho com sombreado amarelo: MALAGUETA, PERUS E BACANAÇO. Em letras menores, ao centro da imagem, outra chamada, esta para o livro: “Um mergulho no submundo. É o clássico velhaco. Um dos livros mais premiados do país. Histórias já traduzidas em oito idiomas".

Esta edição é de 1980, mas a capa é toda ela segunda metade da década de 1970. Nessa época, os bares com bilhares em São Paulo já estavam indo para o brejo. No lugar das mesas, foram sendo instaladas máquinas de fliperama e de jogos da Taito. Eu, então office-boy fora da escola por razões que a luta de classes e a luta pela democracia me explicou depois, dava nesses bares com meus iguais, depois do expediente e às vezes no meio dele, por causa das máquinas. Porém, ainda dividimos espaço neles com personagens como as retratados na ilustração de capa do livro de João Antônio - e, como nela, eles não conversavam.

Ou antes, conversavam por gestos e olhares. No barulho das pancadas que dávamos nas máquinas para impedir que elas engolissem nossas bolinhas antes do tilt, víamos suas bocas se mexerem de raro em raro, em comentário a uma ou outra jogada, entre baforadas de cigarro mata-ratos, vendidos a granel, meio úmidos, amassados e sem filtros.

Os mal educados éramos nós. Eles, com seus tacos engizados e seus olhares concentrados eram uns finos. Íamos embora e eles continuavam noite adentro e madrugada afora. Nunca reclamaram de nosso barulho de passarinhos pousados em galho talvez errado.

Novas edições dessa obra de João Antônio se esmeraram em manter vivo esse texto significativo de nossa literatura. Porém, mataram a capa.

Por isso guardo com tanto amor o exemplar dessa edição, que me chegou em primeira vez pelas mãos curadas de meu irmão, um fino, um boêmio, com quem tantas vezes frequentei esses mesmos bares, e em segunda pelas mãos de comerciantes da educação arruinados.

Tratando do assunto de que trata, e do modo como trata, não poderia imaginar percurso mais legítimo desse livro de João Antônio até mim. Nem melhor capa, cujo autor não mereceu da parte da editora sequer menção na página interna de créditos.

Talvez tomado pela melancolia do espírito natalino, talvez pela saudade de meu irmão, todo final de ano me vejo folheando esse volume. Pela janela da ilustração de capa, recuo no tempo para o distante dezembro de 1979, e  vou saltando  os olhos do pano da mesa de bilhar para a avenida  Prestes Maia, que some na noite rumo a uma Zona Norte que não existe mais.

JEOSAFÁ, professor, foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. É escritor e professor Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais O jovem Mandela (Editora Nova Alexandria);   O jovem Malcolm X A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo, pela editora Mercuryo Jovem. Leciona atualmente para a Educação Básica, em projetos para jovens em situação de risco social.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Ela é a nossa pedra da sorte,a nossa muiraquitã encantada


Contra o mal e a mentira, ela vem em nosso socorro. Perseguida pelo inescrupuloso vilão de língua comprida e visão curta, ela cruza o Brasil levando o sonho de um país em busca de sua identidade e de seu futuro. Ela se encanta em admirações de rios e matas, mas vem das minas para dar em São Paulo e enfrentar o gigante ardiloso de mil caras camaleônicas, ardiloso e unha e carne com estrangeiros levadores de nossas riquezas para os confins dos confins.

Na cidade de concreto o povo a busca mas está sabendo só agora, desfeito de sua identidade verdadeira, mineral, florestal, solidária, brasileira. Ela tem que vencer o malvado na fortaleza dele para que o povo de Macunaíma, recuperado de sua alma primeva, caminhe para frente irmanado em Jiguê, Maanape e o herói.

Quem é ele, esse cruel mentiroso, ardiloso, mil caras, sempre deslavado de micagens com cara de bobo a perguntar: “Quem, eu?” quando rouba pedras e “otras cositas más” ?Ora, ele é um vendido para os estrangeiros, que tem vergonha do Brasil e quer trancar a identidade caipira de nossa gente dentro de um cofre para vender como bugiganga a preço abaixo de banana. Ou não, uma vez que é pervertido, contumaz e colecionador de ódio e pedras para atirar nos inocentes.

Quem é ele, já adivinharam, né?

Ele, vocês leitores sabem, é um Gigante Piaimã, um Venceslau Pietro Pietra, unha e carne com os trituradores de povo, comedores antropófagos. Ele é do bem rico, do bem esperto, do bem truculento. Joaquim Pedro de Andrade em seu filme pôs Exu dando um coro nele, tão do bem pervertido que ele é. Tão bem ruim é que acaba caindo dentro do molho de maldade que tinha mandado preparar para cozinhar os outros. No filme, é bonito de ver o bem pervertido caindo no molho fervente das suas maldades e se afogando no caldo fervente de suas arapucas que deram errado.

E ela, quem é?

Ué, está no começo do princípio do início da luta pelo Brasil até antes de ele falar português. Ela é a luta pela vida, pelo direito do jeito da gente brasileira ser e de estar sobre a terra do seu próprio jeito, que é sua seiva manifesta e ninguém tasca, sem vergonha de morar em Urariquera, sendo esta a metáfora da nossa terra.

Ela tem a força da terra e da vegetação, e dos bichos também, e dos viventes humanos idem ibidem na mesma data, porque é mulher e, assim sendo mãe da vida, niguém tasca, porque vai vencer no final. Mesmo já tendo sido presa por outros venceslais pietros pietras bocudos trogloditas que enfeiam esta gleba.

E o embate final?

O embate derradeiro é em São Paulo. Ela, pedra que é, vem de minas profundas, de metafóricas urariqueras que cascalham nos rios com força mineral e germe de vida fecunda.

Mário de Andrade sabia das coisas quando a pré-viu e pós-viu, ela, a nossa pedra da sorte, que demorou mas foi achada espalhada por toda a metafórica Urariquera. Ela, a nossa pedra da sorte, a nossa muiraquitã, que vence no final, como quis Macunaíma.

Como quis Mário de Andrade, como quis Joaquim Pedro de Andrade. Como queremos nós hoje.