terça-feira, 6 de agosto de 2024

Qual era mesmo a família maldita?

Não se pode crer cegamente no poema. Não se pode duvidar cegamente dele também. No poema as coisas podem ter se dado tal e qual, mas podem também comparecer transmutadas, ou nem comparecer. A única coisa certa num poema que tem letras são as mesmas. Já cansei de falar que num texto cada um lê o que quiser, inclusive o que está escrito. Lente, o poema é, mas que lente? Exata? De aumentar? De diminuir? De embelezar? De deformar? O poema é uma sala dos espelhos de um circo que vem por aí, ou foi há não sabemos quanto tempo.

O furo no muro do poema a seguir, eu garanto que tinha. A família maldita, havia e ainda há remanescentes dela, um dos quais achavam que era meu irmão gêmeo. A mãe, havia até 2020, o pai, até 1998. Aquela preguiça do poema também não há mais. Desde que a barba apareceu na cara, foi sendo substituída ao longo dos anos por outras menos viscerais, porém mais desiludidas — talvez porque esse tipo de preguiça infantil desapareça no primeiro saco de bolachas, enquanto que a preguiça acumulada de certas pessoas, quando nos tornamos adultos, talvez seja uma espécie de reumatismo que, a depender do clima, exige doses crescentes de morfina: é preguiça crônica de gente que nos cutuca, alfineta, ferroa ex officio.

Qual era mesmo a família maldita? 
Ai ai
Me deu preguiça.
Preguiça de minha mãe,
preguiça de meu pai,
dos professores e da inspetora de alunos.
Vazei o muro da escola
por um furo que tinha lá,
feito pelos maconheiros
da família maldita.
Fui jogar bola com eles
sem preguiça nenhuma de ninguém.
Minha mãe me comeu na porrada.
Daí, que a preguiça voltou.
(Livro de Infância - Poema 2)

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).