Não se pode crer cegamente no poema. Não se pode duvidar cegamente dele também. No poema as coisas podem ter se dado tal e qual, mas podem também comparecer transmutadas, ou nem comparecer. A única coisa certa num poema que tem letras são as mesmas. Já cansei de falar que num texto cada um lê o que quiser, inclusive o que está escrito. Lente, o poema é, mas que lente? Exata? De aumentar? De diminuir? De embelezar? De deformar? O poema é uma sala dos espelhos de um circo que vem por aí, ou foi há não sabemos quanto tempo.
O furo no muro do poema a seguir, eu garanto que tinha. A família maldita, havia e ainda há remanescentes dela, um dos quais achavam que era meu irmão gêmeo. A mãe, havia até 2020, o pai, até 1998. Aquela preguiça do poema também não há mais. Desde que a barba apareceu na cara, foi sendo substituída ao longo dos anos por outras menos viscerais, porém mais desiludidas — talvez porque esse tipo de preguiça infantil desapareça no primeiro saco de bolachas, enquanto que a preguiça acumulada de certas pessoas, quando nos tornamos adultos, talvez seja uma espécie de reumatismo que, a depender do clima, exige doses crescentes de morfina: é preguiça crônica de gente que nos cutuca, alfineta, ferroa ex officio.
Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo. Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).