sexta-feira, 17 de setembro de 2010

EDUCAÇÃO — Sem escrúpulos, disposto a tudo para chegar ao poder


Ricardo III.  Dir. Richard Loncraine. Ator principal:  Ian Mckellen. In  Adoro Cinema.

Ele não vale nada, mente, suborna, envolve a própria família em escândalos, se faz de vítima para atraiçoar todos os que estão em seu caminho e, em meio à derrota humilhante que o varrerá  do poder e o trancafiará para sempre nas piores páginas dos compêndios de história, ainda vai proferir com a língua afiada e os olhos esbugalhados de sempre: "MEU REINO POR UM CAVALO!" Seu nome é...Ricardo III.

Ricardo de Gloster (Gloucester), de Willian Shakespeare, personifica tudo de perverso a que a ambição ilimitada pelo poder é capaz de conduzir, principalmente quando ela fermenta, borbulha e eclode em um espírito atormentado, ressentido e despido de qualquer senso de moral:

“Ricardo: Você conhece alguém a quem a corrupção do ouro seria uma tentação para executar secretamente um assassinato?

Pajem: Meu senhor, conheço um nobre descontente com a vida porque seus pobres recursos não correspondem à altivez de seu espírito. O ouro, para ele, vale tanto quanto vinte oradores e, sem dúvida, o tentaria a fazer qualquer coisa.

Ricardo: E qual o nome dele?

Pajem: Tyrrel, meu senhor.

Ricardo: Conheço alguma coisa dele. Vá, pajem. Traga esse homem aqui. [Sai o pajem]. O sábio Buckingham, homem de tão profundas considerações de consciência, não será mais aquele de quem tomo conselhos. Então, veio até este ponto comigo, e agora para, para respirar? Bem, que seja! Casteby, aproxime-se. Espalhe o boato de que Ana, minha esposa, está gravemente enferma. Vou ordenar que ela fique isolada. Além disso, descubra para mim algum nobre ambicioso e de pouca projeção, com quem irei casar imediatamente a filha de Clarence... O garoto é um idiota. Não tenho por que temê-lo. Atenção! O que houve? Está sonhando acordado? Repito, espalhe por aí que Ana, minha rainha, está doente, quase morrendo. Aja depressa. Preciso acabar logo com todas as esperanças de me prejudicarem, antes que cresçam. [Sai Catesby]. Devo me casar com a filha do meu irmão Eduardo porque, de outro modo, meu reinado repousará sobre uma lâmina de vidro. Vou matar seus irmãos e depois me casar com ela. É um caminho tortuoso para o triunfo! Mas estou tão afundado no sangue que um pecado leva a outro e não tenho lágrimas de piedade para derramar.”

Ricardo de Gloster, já empossado Ricardo III, explicita aqui seus planos já depois de ter assassinado o rei Eduardo IV, seu irmão, esposo da mesma Ana a quem desposou e de quem pretende se livrar, e Clarence, seu outro irmão, que o tinha por aliado.

Para Ricardo de Gloster não há impedimento de ordem política, religiosa, ética ou moral que o impeça de atingir aquilo a que almeja. É invejoso, cruel, cínico, hipócrita, caviloso, manipulador e astucioso em mover as vaidades, ambições e falta de escrúpulos alheios em favor de suas próprias pretensões:

“Ricardo: Eu, de aparência tão desagradável, destituído da formosura necessária para agradar às jovens de andar gracioso. Eu, disforme, traído pela natureza, posto no mundo antes da hora, inacabado e tão horrendo que os cães ladram à minha passagem, não aprecio a beleza nem os prazeres desses dias. E, se o sol, para mim, não faz mais do que exibir a mim mesmo minha sombra deformada, o que me resta é odiar esse tempo de fraqueza e de paz. Assim, sou o vilão, aquele que trama e conspira. E uso tudo o que posso: argumentos falsos, calúnias, sonhos, profecias tresloucadas, o que seja, para induzir perigosamente ao engano. Para gerar o ódio que leva ao assassinato.”

A presente edição, além do texto adaptado com grande felicidade, oferece para o leitor: uma “Apresentação”, uma “Introdução”, um “Posfácio” e tópicos, ao final, “Para Discussão e Aprofundamento” muito convenientes, pois situam o contexto histórico e artístico desse drama shakespeariano e orientam uma leitura mais detida da peça.

Realizar leituras dramáticas desse texto teatral consiste em um desafio tentador para professores e alunos. Porém, se seguirmos o conselho de Oscar Wilde, devemos resistir a tudo, menos às tentações.

Encená-la na escola, então, é um ato de desprendimento intelectual e espiritual sem tamanho, pois enfrentar, ainda que seja no palco, o sanguinário e inescrupuloso Ricardo de Gloster é tarefa que exige, além de técnica, coragem.

FONTE: Aguiar, Luiz Antonio. Ricardo III / Willian Shakespeare. Adap. Luiz Antonio Aguiar. Rio de Janeiro. Ed. DIFEL, 2009.

Jeosafá Fernandez Gonçalves é Doutor em Letras pela USP Pós-Doutor em e História pela mesma Universidade. Escritor e professor, lecionou para a Educação Básica e para o Ensino Superior privados. Foi da equipe do 1o. ENEM, em 1998, e membro da banca de redação desse Exame em anos posteriores. Compôs também bancas de correção das redações da FUVEST nas décadas de 1990 e 2000. Foi consultor da Fundação Carlos Vanzolini da USP, na área de Currículo e nos programas Apoio ao Saber e Leituras do Professor da Secretaria de Educação de São Paulo.  Autor de mais de 50 títulos por diversas editoras, entre os quais Carolina Maria de Jesus: uma biografia romanceada, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria); O espelho de Machado de Assis em HQ, A lenda do belo Pecopin e da bela Bauldour, tradução do francês e adaptação para HQ do clássico de Victor Hugo (Mercuryo Jovem).